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O Autor

O Esqueleto

O Hóspede

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O Autor

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Era filho do marechal João Nepomuceno de Medeiros Mallet e de Mariana Leopoldina de Carvalho Pardal. Neto do marechal Emílio Mallet, patrono da artilharia do Exército Brasileiro, e do brigadeiro João Carlos Pardal. Seu pai e seu avô paterno participaram da Guerra do Paraguai.

Pardal Mallet foi um menino precoce, aprendendo a ler sozinho. Antes de completar dez anos, já ensaiava alguns escritos. Foi aluno exemplar, com certa inclinação para idiomas estrangeiros tendo aprendido na infância inglês e francês. Concluiu os estudos iniciais na sua terra natal mudando posteriormente para o Rio para ingressar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Em 1884 interrompeu o curso porque um seu professor, o Visconde de Saboia, o ameaçou reprovar, caso não abandonasse suas ideias republicanas manifestadas em artigos publicados em jornais cariocas. Convicto de suas opiniões, abandonou definitivamente a faculdade para dedicar-se à literatura e ao jornalismo.

Mudou-se, ao que se consta, para São Paulo onde se matriculou na Faculdade de Direito de São Paulo e posteriormente se dirigiu para o Recife em cuja faculdade concluiu o curso. Na ocasião de receber o diploma, negou-se a prestar juramento, alegando ser republicano e nada dever aos mestres, que segundo ele, "jamais lhes ouvira a palavra". A situação desagradável foi contornada graças a Joaquim Nabuco, que o defendeu.

Durante sua estada em Pernambuco publicou os romances Hóspede e Meu Álbum, ambos de 1887. No ano seguinte sai o romance Lar.

De volta ao Rio de Janeiro, passou a frequentar as rodas boêmias tendo como companheiros Olavo Bilac, Raul Pompeia, Coelho Neto, Luís Murat, José do Patrocínio, Artur Azevedo, Émile Rouéde, Aluísio Azevedo e Paula Ney.

Fervoroso adepto das ideias republicanas, tornou-se redator-chefe, em 1888, do jornal A Cidade do Rio, de José do Patrocínio, mas no ano seguinte rompeu com o amigo e protetor alegando divergências políticas. Em 1889 teve sério litígio com Olavo Bilac, terminando a questão num duelo em que saiu ferido na barriga. Entretanto, depois se reconciliaram.

Com o advento da República, fez dura oposição ao governo do Marechal Floriano, fazendo parte da Revolta da Armada, acabando preso e desterrado em Tabatinga, no Amazonas em 1893. Decretada a anistia, voltou para o Rio de Janeiro. Antes dos 30 anos, morreu de tuberculose em Caxambu, onde tentara se recuperar inutilmente.

Hóspede e Lar foram reeditados em um só volume pela Academia Brasileira de Letras em 2008.

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O Esqueleto

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Capítulo I: A noite na taverna

Era por uma triste noite chuvosa, dessas que faz bem gozar quando a gente esta em casa. Lá fora, na rua do Piolho, a chuva argamassava a lama ao ritmo plangente de uma melopéia de cativo. E o vento vinha por ela assoviando, como por um funil, para desembocar imprecativamente no campo da Alampadosa. Dentro, na célebre tasca do Trancoso, a luz tremia vagarosamente nos grandes candieiros de azeite de peixe. Dava um lúgubre aspecto aquele antro de terra batida para chão, e de paredes escalavradas onde a gaiatice dos fregueses gostava de pintar obscenidades e onde se fazia a carvão a conta complicada dos pichéis.

Fantástico, por detrás do balcão envernizado como um cabo de enxada, o Trancoso erguia o busto na plenitude atlética de seu tórax. Era a grande cabeça barbuda e gadanhenta e, por debaixo da blusa felpuda de vasconço, o peito largo e forte a oscilar numa tempestade de respirações troando muitas vezes o grito estentórico dos apelativos brutais. E, para além na vastidão escura do aposento, por meio dos altos e bojudos tonéis cheios de cartaxo e de aguardente de cana, estavam as pequenas mesas de pau carunchoso, rodeadas de mochos baixos em rodelas de madeira sobre três espeques.

Naquela hora treda da noite, retardavam-se entretanto os fregueses a pretexto de que vinham cansados da procissão ao outeiro da Glória, e de que a chuva vergastava lá fora a quem tinha a audácia de sair. O Trancoso amuava-se, posto que lhe fossem emborcando as bebidas e o cobre lhe caísse pela gaveta adentro com um grande retinir metálico de chocalhar de guizos.

Já fora para ele o tempo dos primeiros açodamentos em juntar os patacões. As moedas de ouro contavam-se aos centos na velha arca escondida debaixo do nauseabundo catre onde dormia. Muito criança ainda, viera de além-mares para essas terras do Brasil, onde o ouro boiava à tona das enxurradas. E, em vez das longas empresas viajantes pelo sertão adentro, preferira o sossego das bodegas onde o dinheiro vinha ter pela lógica fatal das bebedeiras. Agora, diziam-no rico, senhor de bastantes haveres e traficante até das galeras que iam buscar o negro ao vasto deserto branco das plagas africanas.

Enriquecera principalmente depois da chegada de d. João VI, quando a real comitiva de fidalgos se derramara pela velha cidade de Mem de Sá, com uma enorme praga de orgias e depredações. Fazia-se modesto, rindo com bom sorriso galhofeiro, quando alguém alevantava o valor de suas fazendas. Dizia que não! que mais luzia do que havia!

Mas não andava disposto para as longas vigílias da taverna no serviço de borrachos retardados. E, naquela noite, já por três vezes tentara despedir a freguesia. Os fregueses bebiam, monossílabos raros e sonolentos ouviam-se apenas de espaço a espaço. E o barulho contínuo da água, regular e metódico na tristeza da noite.

O Trancoso principiava a cochilar, quando a porta se abriu de repente: uma lufada sacudiu violentamente os velhos candieiros, que rangeram nas correntes de ferro. E leve, rápido como o vento que o trouxera, d. Álvaro Bias saltou no meio da sala, gotejante como uma biqueira de telhado.

Saltou, parou, e mirou-se. No chão, em roda dos sapatos puídos de d. Bias, formou-se logo uma poça d'água. D. Bias, magro e esgalgado, no velho gibão de veludo sem pêlo, parecia um guarda-chuva fechado, depois de um aguaceiro formidável.

D. Bias, fidalgo espanhol da mais pura linhagem, perseguido pelos credores e pelos alguazis em todas as bodegas das margens dos Mansanares, pulou um dia a fronteira e foi tentar a vida em Portugal. Não houve serão de convento que não procurasse - em vão! - saciar-lhe a fome secular: o primeiro avô conhecido de d. Bias era tenente de Cid Campeador, e entrava em combate com um alforje às costas, carregado de olla podrida. A família de d. Bias não era uma família: era a arvore genealógica da fome.

Em Portugal, d. Bias comeu, d. Bias bebeu. Com esses predicados, ganhou as boas graças de d. João VI, que em 1808 o trouxe com sua corte para o Brasil.

Este D. Bias, segundo reza a crônica, logo que chegou de Lisboa, foi morar na rua do Lavradio, na casa hoje no 40, pertencente a Antônio José Viana, à razão de 8$ por mês, cujo aluguel nunca pagou. E tais tratantices fez, combinado com o desembargador - ouvidor Francisco Alves de Andrade, que se ficou com o prédio e terrenos.

O mesmo praticou com o carpinteiro Custódio Pinto de Oliveira, que lhe não querendo vender dous lotes de terrenos contíguos e que fazem face com a rua, de acordo com a mulher deste Custódio, formou-lhe culpa de mancebia e meteu-o na cadeia em princípio do ano de 1811. D. Bias se ficou com a mulher e a filha de Custódio, e na posse dos bens deste depois do desquite.

Custódio, sem sua mulher e filha, e seus bens, foi viver do jornal que lhe dava o célebre escultor Ângelo Pallingrini, por alcunha o Satanás.

O Trancoso rosnou uma praga, quando o fidalgo lhe apareceu. Mas d. Bias enganchou-se num banco. E, uma vez servido, pôs-se a beber fidalgamente a sua zurrapa, levantando os braços para não emporcalhar na mesa os seus manguitos sujos. A sala recaiu no silêncio. A água continuou a bater, os fregueses continuaram a bebei; o Trancoso continuou a cochilar, e d. Bias, esgotado o pichel, cravou dous olhos compridos e sôfregos no gordo chouriço que fulgurava no balcão.

- Traga outra medida, gritou a voz avinhada de um sujeitinho baixo e gordo, tão baixo que tinha as pernas a oscilar dependuradas do mocho, e tão gordo que parecia um tonel cuidadosamente suspenso do chão para não se estragar com a umidade.

O Trancoso remexeu os ombros num esgar sonolento de desprezo.

- Melhor fariam vocês todos em limpar-me a casa de suas borracheiras! disse. E, depois de uma pausa, acrescentou:

- Demais, por estas horas tardias da noite, eu não vendo mais fiado! Ponham dinheiro no balcão se querem a boa da pinga! Súcia de malandros que a polícia d'el-rei bem devia vir buscar para uma dormida na rua da Vala!

Um belo movimento de solidariedade fez-se então entre toda aquela gente que o Trancoso assim maltratava com o desplante dos homens fortes e enriquecidos pela canalha miúda dos pobretões de gibão esburacado.

E o Carniça - um mulato esguio e de maus bofes, que vivia de sovar os negros nas casas de família - saiu à frente das reclamações.

- Que assim não se tratava à gente séria! gritou esmurrando a mesa onde as garrafas e os copos dançaram.

- Ninguém se teme da polícia d'el-rei! fez d. Bias, fanfarrão, saltando para o meio da bodega com a mão nos copos da espada e um largo gesto arrogante.

- Qual el-rei, nem pêra el-rei! vociferou o Carniça, pondo-se também de pé, muito avinhado e bêbado. - Nós aqui já estamos fartos de aturar toda essa corja portuguesa! Eu cá não faço mistério para gritar: Viva o príncipe regente!

E gritou, com e feito, o grito revolucionário daquele tempo, num grande berreiro forte de convicção popular.

Os outros entreolharam-se, já desarmonizados em pensamento. A questão deslocara-se. Já não era a rusga de uns fregueses retardatários contra um dono de taverna que queria fechar a casa, e não fiava mais. A luz baça e fedorenta dos candieiros que rangiam nas correntes, ofegava agora o hálito quente das revoluções.

- Qual d. Pedro! Mandam as cortes. E ele há de partir para abater a cerviz de vocês outros, canalhas de brasileiros! rosnou o homem-pipa que dera origem à contenda.

Os fregueses dividiram-se em dous grupos. De um para outro voaram imediatamente os copos e as garrafas. E d. Bias, que se ficara no mesmo lugar, entre os contendores, levou o melhor do primeiro arremesso. Rolou até pelo chão quando o Carniça investiu manhoso para tomar-lhe a durindana. E lá do balcão, o Trancoso, abrindo uma larga e forte navalha catalã, veio para o meio do barulho numa neutralidade agressiva de quem queria pôr no olho da rua toda aquela comitiva brigalhona de ébrios esbodegados.

- Que fossem se haver lá para a lama do Piolho!

Nisto, veio de lá de fora um retinir de armas. Ouviu-se um grito de agonia, e mais outro, e mais outro ainda. Correram todos para a porta. Matava-se ali por perto.

E d. Bias, muito lambuzado de poeira e vinho no seu roupão de veludo sem pêlo, ergueu-se e foi para o fundo da casa, aproveitando a confusão do momento para esconder o chouriço por debaixo da camisa.

A porta, todos alongaram os olhos pela noite escura. A chuva estiara um pouco. Sem iluminação, a rua do Piolho desenhava indecisamente os seus perfis de casas baixas. E a alguma distância da taverna, via-se redemoinhar um grupo confuso de homens que se batiam. Mais alto que o tinir das espadas soavam as pragas dos combatentes.

Era positivo que um dos combatentes se defendia de todos os outros, com uma coragem de leão.

Os fregueses do Trancoso ficaram sem movimento contemplando a luta. E Trancoso encolheu os ombros e voltou para seu posto no balcão, rosnando entre dentes que melhor que se matassem todos uns aos outros aqueles vagabundos que tiravam a espada por qualquer patifaria.

Os outros ficaram sem intervir. O Carniça entusiasmou-se: um dos combatentes acabava de cair varado por um bote do que se defendia. E o mulato, diante daquele espetáculo delicioso para seu temperamento de galo de briga, berrou, batendo palmas:

- Aí, bravo!

Os dous agressores perdiam terreno. A espada do desconhecido girava multiplicando os botes, e pondo-lhe diante do peito um muro de aço em que vinham bater inofensivas as armas dos outros dous. Mais um ferido. E o último rodou sobre os calcanhares, fugindo, seguido de perto pelo inimigo.

Nesse momento, d. Bias indignou-se da covardia em que estavam todos, vendo um bater-se com tantos.

- Caramba! não se dirá que um fidalgo de Espanha deixou de ir em auxilio de um fraco!

E abalou de durindana em punho para o lado em que o desconhecido perseguia o fugitivo. Mas o fidalgo viu a sua bravura sem proveito. O desconhecido já vinha de volta, e daí a pouco, quando entrou na tasca, o Trancoso, ao ver-lhe a fisionomia, acercou-se dele com um ar de respeito e carinho. Os fregueses cumprimentaram-no também. Sentou-se a um mocho, e atirando a espada ensangüentada sobre o balcão, ordenou ao taverneiro:

- Limpa isto e dá-me vinho!

Capítulo II: O satanás

Tinha uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual todos respeitosamente se acercavam.

Por sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e com esporas de grandes rosetas.

E aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se, indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida restante.

Chamavam-no Satanás e tinha a sua história.

De origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada, entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.

Ângelo Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego, autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos, passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço, matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante dos serões. E apaixonou-se pela tia - uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.

Mas quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por entre os quais se afincava o punhal assassino.

Junto ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da espada - sentinela da honra no campo da morte.

Ângelo Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas, aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.

E antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.

O rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.

Ângelo, italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele nem tinha aprendido a respeitar.

A idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz, fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.

Lá em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente no gozo lascivo dos serralhos.

O Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.

Noticias, porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio aventureiro de fidalgo.

Cumpria-se, entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de Nápoles.

E foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.

Foi ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas de seus filhos.

Na corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de seu porte e pelo aventureiro de seu viver.

E nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia onde.

Aqui no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que andava pela amizade de d. Pedro.

Velho embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.

E por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.

Com o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro, que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.

Por isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.

Apenas d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após a troca. de algumas palavras.

E o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.

- Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.

Mas ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.

Depois ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:

- Pague isso em bebidas a esta gente.

E saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer, chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.

Capítulo III: O paraíso de Satanás

O Satanás seguiu toda a Rua do Piolho e enveredou pela do Conde Lourenço da Cunha. Quase ao chegar ao campo de Santana, parou à porta de uma casinha modesta, de varanda pintada de verde, e bateu três vezes com os copos da espada.

Era ali, desconhecido e afastado, que fulgurava para o Satanás, o que ele chamava - o seu paraíso: era ali que o escultor escondia, como um avarento esconde o seu tesouro, a filha adorada única afeição pura da sua vida.

Ângelo Pallingrini, o Satanás, como mestre d'armas do príncipe, dedicara-se a guiar-lhe e fortificar-lhe o pulso; e quando o príncipe se fez homem, quando o seu altivo temperamento cavalheiresco se desenvolveu, ávido de amores e de façanhas, o Satanás passou sem transição do ofício de mestre d'armas ao ofício de alcoviteiro, e depois de guiar-lhe o pulso, começou a guiar-lhe o coração. Dentro do bolso do seu gibão havia sempre a certeza de se encontrar pelo menos um bilhetinho amoroso do real conquistador. O Satanás desbravava o caminho, aplanava-o, desembaraçava-o de todas as dificuldades.

Quando o príncipe chegava, estava tudo feito: via e vencia - e, logo perto, ficava o servidor fiel, de espada em punho, vigiando os amores do seu amo, para não deixar que os fosse perturbar a fúria de um pai rebarbativo ou a inconveniência de um marido indignado.

Desse lodo de todos os dias, purificava-se à noite o escultor, indo beijar a filha que ali vivia, guardada por uma velha espanhola, dona Emerenciana.

Assim que conseguia deixar o príncipe entretido nos braços de alguma rapariga condescendente, lá ia, embuçado na sua capa, pedir ao seu anjo da guarda um beijo purificador. Via-a, beijava-a, e voltava a correr aventuras com d. Pedro.

Na cidade, rosnava-se que o Satanás tinha amores ocultos com uma criatura divina que o amava até à loucura; porque, por mais precauções que tomasse o escultor para esconder as visitas noturnas à casinha colonial já começavam a fazer sobre o caso um tecido caprichoso de suposições. D. Bias, que todos sabiam muito amigo do Satanás, tomava uns ares misteriosos quando a esse respeito o interrogavam.

- Então?! diga cá, d. Bias: são amores, heim?

- E que é que tem a arraia-miúda com os amores de um cavalheiro digno? Pois, que sejam amores... E então? O que não se pode dizer, é como a bela se chama. É uma senhora que conhece de cor os nomes gloriosos de cinqüenta avós, e cujo nome não deve, portanto, andar na boca do populacho! Sim! que nós cá, fidalgos de raça, não nos sujamos com mulheres de meia-tigela: queremos sedas e jóias, e beijos fidalgos como nós!

Mas o Satanás deixava que a bisbilhotice de todos se perdesse em conjeturas, e redobrava de precauções.

Naquela noite, foi d. Emerenciana quem lhe veio abrir a porta. O Satanás, seguido pela espanhola, subiu a escada estreita e escura que levava ao sobrado, e entrou na sala, onde a filha, assim que o viu, atirou sobre a mesa o bordado e correu a dependurar-se-lhe do pescoço, num grande abraço carinhoso. Pela dura face do espadachim rolaram duas lágrimas silenciosas e os seus olhos embeberam-se, úmidos e sôfregos, nos dous céus azuis dos olhos da filha.

Branca teria quando muito 16 anos. Era já uma deliciosa mulher, esbelta, talhe gracioso de palmeira, seios tufados provocadoramente e grandes olhos azuis, dando uma encantadora expressão de ternura a sua face pálida e doentia de moça educada com rigor, sem distrações, sem grandes passeios ao ar livre. Mas o que a tornava mais bela, o que constituía o seu maior encanto, eram os cabelos cor de ouro, longos e finíssimos, cabelos que, quando soltos, cobriam-lhe todo o corpo, da cabeça aos pés, como um grande manto tecido de raios de sol.

Educada pela velha Emerenciana, com uma severidade terrível, Branca aos 15 anos ainda tinha uma alma de criança ingênua, que não sabe o que é a vida. Os seus grandes olhos azuis abriam-se curiosamente para o mundo, sem compreendê-lo.

Emerenciana cumpria fielmente as ordens do Satanás, que não queria que Branca chegasse à janela nem saísse à rua, muito cioso da virtude da filha, muito receoso da depravação dos fidalgos portugueses que d. João VI deixara no Brasil com o príncipe regente. De maneira que Branca se fizera mulher entre quatro paredes, tendo como únicas distrações os seus bordados e a conversa com d. Emerenciana, que, apesar do seu papel de vigilante rigorosa, tinha pela moça verdadeira afeição de mãe.

Foi mesmo a instâncias de Emerenciana que o Satanás consentiu que a filha, depois dos 15 anos, desse alguns passeios, raros e curtos, pela cidade. De um desses passeios nasceu para Branca uma nova era de sensações nunca até então experimentadas nem sonhadas pela sua inocência de reclusa.

Foi justamente um ano antes da noite cujos sucessos se estão desenrolando aos olhos do leitor. Era o dia da procissão de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Toda a cidade escovara os fatos, sacudira as sedas, brunira as arrecadas, e abalara para o Outeiro, que às duas horas da tarde, apresentava o mais pitoresco aspecto que é possível imaginar.

Desde o adro da ermida que em 1671 a piedade do ermitão Caminha erigira no alto do Outeiro, até à pequena praça em que vinha alargar a rua da Glória, toda a ladeira se apendoava de arcos de folhagens e bandeirolas. As famílias sentavam-se em bancos toscos, em um grande espalhafato de sedas novas, enquanto, de pé, os moleques e as negrinhas, vestidos de branco, muito sérios, carregavam cestos cheios de pão e galinha assada. Porque a gente daquele tempo sofrera a influência de d. João VI, que não podia ir a festa nenhuma sem fartas provisões de viveres.

Branca fora também ver a procissão, com a velha Emerenciana. E estava muito contente, com vontades infantis de bater palmas, gozando aquele grande prazer do contato da multidão, saciando-se de vida, de barulho, de agitação. Fez-se um movimento no povo. Era a procissão que descia.

Primeiro, um padre trazia o crucifixo entre dous acólitos, que empunhavam grandes varas de prata, em cuja extremidade uma vela de cera ardia no meio de um tufo dê rosas artificiais. Depois vinha a irmandade, precedendo o andor vagarosa, fazendo cair ao chão as grandes lágrimas brancas das tochas acesas. Todos se ajoelharam. Nossa Senhora passava, muito branca e muito serena, guirlandada de raios de prata, de mãos cruzadas ao peito, de olhos erguidos ao céu radiante daquela tarde formosa, sobre o andor dourado, transbordante de flores. Depois, o pálio, oscilando... Ouviam-se já, no couce do préstito, os acordes da banda militar.

Branca admirou o talhe esbelto de d. Pedro, que vinha fardado, empunhando uma das varas... Por um acaso qualquer, o batalhão parou mesmo diante de Branca.

E Branca sentiu de repente que o sangue lhe galopava à face e que o coração lhe batia no peito, vendo o capitão que comandava a tropa, cravar-lhe na face dous olhos negros e ávidos, que a abrasavam toda no primeiro rubor amoroso.

Paulo de Andrade, capitão das guardas do príncipe regente d. Pedro, era um belo moço de 27 anos, desempenado e forte, belo exemplar de homem e soldado. Foi desse cruzamento instantâneo do seu olhar com o de Branca que nasceu a paixão que o devia para sempre unir a ela e que o devia matar: paixão nascida num minuto, dessas paixões que, por aparecerem muitas vezes nos romances, parecem hoje absurdas e incríveis na vida real.

Branca seguiu-o com os olhos, até vê-lo desaparecer numa volta da ladeira. E já ele tinha desaparecido e ainda ela o via, alto e bonito, na farda abotoada, com a espada ao ombro, fulgurando à frente dos soldados.