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Introdução

Tive dúvidas sobre o nome que colocaria nesta narração, não sabia se chamá-la “A última ofensiva de Batista” ou “Como 300 derrotaram 10.000”, que parece um conto das Mil e Uma noites. Por isso, me vejo obrigado a incluir uma pequena autobiografia da primeira fase de minha vida, sem a qual não se compreenderia seu sentido. Não quis esperar que se publicassem, um dia, as respostas a inumeráveis perguntas que me fizeram sobre a infância, a adolescência e a juventude, fases que me converteram em revolucionário e combatente armado.

Nasci em 13 de agosto de 1926. O assalto ao quartel Moncada de Santiago de Cuba, a 26 de julho de 1953, ocorreu três anos depois que me formei na Universidade de Havana. Foi o nosso primeiro enfrentamento militar com o Exército de Cuba, a serviço da tirania do general Fulgencio Batista.

A instituição armada em Cuba, criada pelos Estados Unidos depois de sua intervenção na ilha durante a segunda Guerra de Independência − iniciada por José Martí em 1895 − era um instrumento das empresas norte-americanas e da alta burguesia cubana.

A grande crise econômica desencadeada nos Estados Unidos, durante os primeiros anos da década de 1930 implicou grande sacrifício para nosso país. Os acordos comerciais impostos por aquela potência tornaram-no totalmente dependente dos produtos de sua indústria e sua agricultura desenvolvida. O poder aquisitivo do açúcar se reduzira quase a zero. Não éramos independentes, nem tínhamos direito ao desenvolvimento. Dificilmente podiam ocorrer piores condições num país da América Latina.

À medida que o poder do império crescia até se converter na mais poderosa potência mundial, fazer uma revolução em Cuba se tornava uma missão bem difícil. Poucos fomos capazes de sonhá-la, mas ninguém poderia se atribuir méritos pessoais numa proeza que foi a mistura de ideias, feitos e sacrifícios de muitas pessoas ao longo de muitos anos, em muitos lugares do mundo.

Com esses ingredientes se pôde conquistar a independência plena de Cuba, e uma revolução social que resistiu com muita honra mais de 50 anos de agressões e o bloqueio dos Estados Unidos.

Em meu caso concretamente, por mera sorte, nesta altura da vida posso oferecer testemunho de acontecimentos cujo valor para as novas gerações se deve ao esforço que concentraram pesquisadores rigorosos e sérios, cujo trabalho, ao longo de dezenas de anos, coligiu informações que me ajudaram a reconstruir boa parte do conteúdo deste livro, ao qual decidi intitular A Vitória Estratégica.

As circunstâncias que me levaram a tais ações bélicas permanecem indeléveis em minha mente. Sinto satisfação em recordá-las, porque de outro modo não me explicaria por que cheguei às convicções que, ao fim e ao cabo, determinaram o caminho de minha existência.

Não nasci político, embora desde criança observasse acontecimentos que, gravados em minha mente, me ajudaram a compreender as realidades do mundo.

Em minha Birán natal só havia dos estabelecimentos que não pertenciam à minha família: o telégrafo e a escolinha pública. Lá, me sentavam na primeira fila porque não havia, nem podia haver algo parecido com uma creche. Forçosamente aprendi a ler e escrever. Em 1933, sem ter completado 7 anos, a professora, que não recebia nem o vencimento que lhe devia o governo, pretextando a hipotética inteligência do menino, me levou para Santiago de Cuba, onde morava sua família. Viviam numa casa pobre, praticamente sem móveis e gotejava em toda parte quando chovia. Naquela cidade, não me mandaram nem para uma escola pública como a de Birán.

Passei muitos meses sem frequentar o colégio, não fazia outra coisa senão escutar, num velho piano, a prática de solfejo da irmã da mestra, uma professora de piano desempregada; aprendi somar, diminuir, multiplicar e dividir, graças às tabuadas impressas na capa vermelha de um caderno que me entregaram para praticar a caligrafia, mas ninguém ditou nada, nem corrigiu nunca.

Na velha casa onde inicialmente me hospedaram nos alimentávamos sete pessoas, entre elas a irmã e o pai da professora, de uma marmita que levavam uma vez por dia. Conheci a fome acreditando que era apetite: com a ponta de um dos dentes do pequeno garfo pescava o último grãozinho de arroz, e com a linha de costura consertava meus próprios sapatos.

Em frente à modesta casa de madeira onde morávamos, um Instituto de Ensino Médio permanecia ocupado pelo Exército; vi soldados ferindo pessoas com as culatras de seus fuzis. Poderia escrever um livro com aquelas lembranças. Era a instituição infantil para onde me levou aquela humilde professora, numa sociedade em que o dinheiro reinava absolutamente.

Minha família tinha sido enganada, e eu não conseguia perceber aquela situação; o engano me fez perder tempo, mas me ensinou muito sobre os fatores que a determinaram. Após vários episódios, ao ter completado 8 anos, fui matriculado, em janeiro de 1935, no primeiro ano de uma escola dos Irmãos La Salle, bem perto da primeira catedral que os conquistadores espanhóis construíram em Cuba. Outra aprendizagem nova e fecunda começava.

Entrei naquela escola como aluno externo, morava numa nova casa, muita próxima da anterior, para a qual se mudou a professora de música, irmão da mestra de Birán. Com aquela família chegamos a morar três irmãos: Angelita, Ramón e eu, cada um de nós pagava uma pensão. O pai delas tinha morrido no ano anterior. Já não existia fome física, se bem que, ainda por um tempo, era obrigado a continuar decorando as conhecidas regras aritméticas. Mesmo assim, eu estava farto daquela casa e me revoltei de maneira consciente pela primeira vez em minha vida; recusei comer algumas verduras sem gosto que às vezes me obrigavam a comer e quebrei todas as regras de educação formal, sagradas naquela casa de família de requintada cultura francesa, adquirida na própria Santiago de Cuba. Na família tinha entrado o cônsul do Haiti pela via do casamento. A minha revolta se tornou intolerável e resolveram me mandar para o internato. Ameaçaram-me mais de uma vez com isso para impor disciplina; não sabiam que era justamente isso o que eu queria. O que para outras crianças era duro, para mim significava a liberdade. Nunca me levaram ao cinema! Desfrutaria das delicias de um aluno interno. Foi o primeiro prêmio que recebi em minha vida. Era feliz.

Desde então, meus problemas seriam outros. Tinha chegado a Santiago dois anos adiantado, e entrei na escola dos Irmãos La Salle alguns anos atrasado. Cursei facilmente o 1º e o 2º ano. Aquela escola era maravilhosa. Íamos três vezes ao ano a Birán: no Natal, na Semana Santa e nas férias de verão. Lá, Ramón e eu éramos totalmente livres.

Na escola La Salle, pulei do 3º ano ao 5º, era o prêmio pelas minhas boas notas, assim recuperei o tempo perdido. No 1º semestre tudo ia bem: boas notas e excelentes relações com os novos coleguinhas de aula. Recebia o boletim branco, que se entregava semanalmente aos alunos por boa conduta, com os problemas normais de qualquer discípulo. Sucedeu então um percalço com um dos membros da congregação, inspetor dos alunos internos.

A escola possuía um vasto terreno no outro lado da baía de Santiago chamado Renté. Era um lugar de retiro e descanso da congregação. Os alunos internos eram levados para lá às quintas-feiras e aos domingos, dias em que não havia atividade escolar. Tinha uma boa quadra esportiva. Eu praticava esportes, nadava, pescava, explorava. Não longe da entrada da baía se viam os vestígios da Batalha Naval de Santiago, em formato de grandes projeteis que adornavam as entradas dos prédios. Certo domingo, na volta, eu tive uma briga sem importância com outro aluno do internato, na lancha El Cateto, durante o trajeto de Renté ao cais de Santiago. Mal chegamos à escola, fizemos as pazes; por causa dessa desavença, aquele autoritário irmão da ordem religiosa bateu na minha cara com as mãos espalmadas e com toda a força de seus braços. Era uma pessoa jovem e forte. Fiquei atordoado, as bofetadas zumbiam nos meus ouvidos. Antes, me tinha chamado à parte, já quase à noite. Não deixou que eu explicasse. No longo corredor por onde me levou ninguém nos via. Duas ou três semanas depois, me tentou humilhar de novo com um cascudo na cabeça por falar na fila. Nessa segunda ocasião, eu saía do refeitório entre os primeiros, ao terminar o café da manhã, porque os alunos sempre faziam o possível para serem os primeiros na fila, e assim poder jogar um tempinho com pelotas de borracha antes das aulas. O pão com manteiga que levava na mão − outro costume dos alunos quando saímos do refeitório depois de engolir os primeiros alimentos do dia − joguei na cara do inspetor, e parti para cima dele com mãos e pés, na frente dos alunos internos e externos. De modo que sua autoridade e seus métodos abusivos ficaram bastante desprestigiados. O acontecimento foi recordado nessa escola durante longo tempo.

Naquele tempo eu tinha 11 anos, me lembro bem de seus nomes. Contudo, não desejo repeti-los. Dele não soube mais nada, há mais de 70 anos. Não lhe guardo rancor. Muitos anos depois da vitória revolucionária, soube do aluno que motivou o incidente; ele manteve um comportamento impecável e sério.

Todavia, a ocorrência teve consequências para mim. O incidente tinha acontecido semanas antes do Natal, quando teríamos duas semanas e meia de férias. Ele continuava sendo inspetor, e eu, aluno; ambos nos ignorávamos totalmente. Por dignidade elementar, meu comportamento foi impecável. Quando nossos pais vieram nos apanhar, evidentemente convocados por eles, lhes esconderam a verdade, acusaram-me e meus irmãos de péssimo comportamento. “Seus três filhos são os três maiores bandidos que passaram por esta escola”, disseram a meu pai. Soube disso pelo que ele contou acabrunhado a outros agricultores amigos que o visitavam nos fins de ano. Raúl tinha apenas 6 anos, Ramón era bondoso e eu não era um bandido.

Foi difícil persuadi-los de que me mandassem outra vez a Santiago para estudar; Ramón e Raúl, que nada tinham a ver com o problema, permaneceram o resto do ano letivo em Birán. Fui matriculado em janeiro de 1938 como aluno externo no Colégio Dolores, regido pela Ordem dos Jesuítas, muito mais exigente e rigoroso nos estudos, porém mais de classe alta e rica que seu rival dos Irmãos La Salle.

Desta feita, tive de morar na casa de um comerciante espanhol amigo de meu pai. Lá, não passei nenhuma penúria material, mas naquela casa, onde vivi até terminar o 5º ano, era um estranho.

No princípio do verão, Angelita, a irmã mais velha, também chegou a essa casa com o propósito de preparar sua admissão ao ensino médio. Para sua preparação foi contratada uma professora negra, que se guiava por um enorme livro que continha a matéria para o exame de admissão. Eu assistia às aulas. Era a melhor professora e, talvez, uma das melhores pessoas que conheci em minha vida. Pensou que eu devia estudar a matéria de admissão e o primeiro ano do ensino médio ao mesmo tempo e realizar as provas tão logo tivesse idade para entrar no ensino médio, um ano mais tarde. Despertou em mim um interesse enorme pelo estudo. Teria sido a única razão pela que estava disposto a suportar a casa do comerciante espanhol nessas férias, ao terminar o 5º ano como externo em Dolores.

Adoeci no final desse verão, e permaneci internado ao redor de três meses no hospital da Colonia Española de Santiago de Cuba. Não houve férias de verão nesse ano. Naquele hospital mutualista, por dois pesos mensais, equivalentes a dois dólares, uma pessoa tinha direito aos serviços médicos. Todavia, poucos podiam arcar com essa despesa. Fui operado de apêndice e aos 10 dias a ferida externa se infectou. Tivemos de esquecer os planos de estudo traçados pela professora. No final desse mesmo ano, em 1938, nos reencontramos os três irmãos como alunos internos do Colégio Dolores.

No 6º ano, após ter perdido várias semanas de aulas, tive de me esforçar para me atualizar. Uma nova fase começava. Aprofundava os conhecimentos em Geografia, Astronomia, Aritmética, História, Gramática e Inglês.

Tive a ideia de escrever uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt que, com sua cadeira de rodas, seu tom de voz e seu rosto amável me simpatizava. Grande expectativa, uma manhã a direção da escola anunciou o grande acontecimento: “Fidel se corresponde com o presidente dos Estados Unidos”.

Roosevelt tinha respondido minha carta. Achávamos que tinha. Em verdade, chegou uma comunicação da embaixada informando que a receberam, e agradeceram. Que grande homem! Já tínhamos um amigo: o presidente dos Estados Unidos! Apesar de tudo que aprendi depois, e talvez por isso, penso que Franklin Delano Roosevelt, que lutou contra a adversidade pessoal e adotou uma posição correta diante do fascismo, não era capaz de ordenar o assassinato de um adversário, e pelo que se sabe dele, é muito provável que não tivesse jogado as bombas atômicas contra duas cidades indefesas do Japão, nem desencadeado a Guerra Fria, dois acontecimentos totalmente desnecessários e torpes.

Naquele colégio da rança burguesia, na maior província de Cuba situada no extremo leste, havia mais rigor acadêmico e disciplina que em La Salle. Eram jesuítas, quase todos de origem espanhola, ordenados sacerdotes numa fase avançada de sua formação, na que deviam exercer como membros da Ordem em alguma tarefa e responsabilidade. O diretor da escola era o Padre García, um homem reto, amável e acessível, que conversava com os alunos.

Desde o 1º ano do ensino primário até o último do ensino médio sempre passava as férias em Birán, uma região de planícies, mesetas e elevações de até quase 1.000 metros, florestas naturais, pinheirais, córregos e poças d’água. Lá, conheci de perto a natureza e fui livre dos controles que exerciam sobre mim nas escolas, nas casas das famílias onde me hospedei em Santiago, ou na minha própria em Birán. Sempre fui defendido por minha mãe, e tive a tutela tolerante de meu pai, mas à medida que ia passando de ano na escola gozava de crescente prestígio na família.

Este não o lugar para falar no assunto, só o mínimo indispensável para compreender o tema que abordo neste livro.

Eu mesmo tomei a decisão de me transferir do Colégio Dolores ao Colégio Belén, na capital de Cuba. Lá, ao contrário do que ocorreu no Colégio La Salle de Santiago de Cuba, o responsável direto dos alunos internos − mais de 100 –, o Padre Llorente, não era uma pessoa autoritária, e longe de ser um inimigo, foi um amigo. Espanhol de nascimento, como quase todos os jesuítas daquele colégio, estava na fase prévia de ser ordenado sacerdote. Um irmão seu, mais velho que ele, exercia o sacerdócio entre os esquimós de Alaska, e escrevia, em seu livro En el país de los eternos hielos, relatos sobre a vida, os costumes e as atividades daquele povo indo-americano no meio de uma natureza virgem, que nos maravilhava.

Llorente tinha sido sanitarista na Guerra Civil Espanhola; ele contava a dramática história dos prisioneiros fuzilados ao concluir aquela contenda. Sua tarefa, junto com outros que exerciam a mesma função, era atestar que estavam mortos antes de sepultá-los. O Padre Llorente não falava em política, não lembro tê-lo escutado opinar sobre o tema. Era um jesuíta orgulhoso de sua ordem religiosa. Estimulava as atividades que colocavam à prova o espírito de sacrifício e o caráter de seus alunos. Ambos planejamos caçar crocodilos na Ciénaga de Zapata, onde havia aos milhares. E, em 1945, durante as últimas férias de verão, organizamos a escalada do monte Turquino. A escuna que nos devia levar pelo mar, de Santiago de Cuba até Ocujal, não deu partida a noite toda e não havia outro caminho. Foi preciso cancelar o plano. Lembro que carregava uma das espingardas automáticas calibre 12 que peguei de minha casa. Como me ajudou, mais tarde, aquela excursão, quando me tornei combatente guerrilheiro, e meu reduto principal ficava justamente nessa zona!

Ao me formar no ensino médio em Letras, aos 18 anos, era esportista, explorador, escalador de montanhas, bastante afeito às armas – que aprendi a usar com as do meu pai –, e bom estudante das matérias lecionadas no colégio onde estudava.

Fui escolhido o melhor atleta da escola no ano em que me formei, e chefe dos exploradores no mais elevado grau concedido lá. Naquela noite da formatura, minha mãe se sentiu comprazida com os aplausos de todos os presentes. Pela primeira vez em sua vida tinha feito um traje de gala para ir a um ato de solenidade. Ela foi uma das pessoas que mais me ajudou no propósito de estudar.

No anuário da escola, correspondente ao curso em que me formei, aparece uma foto com as palavras seguintes:

Fidel Castro (1942-1945). Distinguiu-se em todas as disciplinas ligadas às letras. Excelência e congregante, foi um verdadeiro atleta, sempre defendeu com coragem e orgulho a bandeira do colégio. Soube conquistar a admiração e o carinho de todos. Cursará Direito e temos certeza que encherá de páginas brilhantes o livro de sua vida. Fidel tem talento e não faltará o artista.

Em verdade, devo dizer que eu era melhor em Matemática que em Gramática. Achava mais lógica, mais exata. Estudei Direito porque discutia muito, e todos afirmavam que eu ia ser advogado. Não tive orientação vocacional.

As escolas de elite lançavam às ruas multidões de formandos carentes de conhecimentos políticos elementares. Sobre um tema fundamental como a história da humanidade, nos relatavam, em primeiro lugar, as consabidas aventuras bélicas de nossa espécie, desde os tempos dos persas até a Segunda Guerra Mundial, histórias que tanto cativavam meninos e jovens varões.

O negócio da produção e venda de brinquedos de guerra, hoje em dia, é quase tão grande quanto o comércio de armas. Não nos ensinaram nada do sistema social que conduz a tais loucuras e às próprias guerras.

Ilustraram-nos sobre a história da Grécia e Roma, mas civilizações antigas como as da Índia e China mal se mencionavam, se não fosse para contar as aventuras bélicas de Alexandre o Grande, e as viagens de Marco Pólo. Sem ambos os países, hoje resulta impossível escrever a história. Nem em sonhos nos falariam então das civilizações maia, aimará e quíchua, do colonialismo e do imperialismo.

Quando terminei o ensino médio em Letras, só havia uma universidade, a de Havana, todos os estudantes aportavam lá, com nossa falta de conhecimentos políticos. Salvo exceções, quase todos os alunos eram da pequena burguesia, suas famílias desejavam ansiosamente uma vida melhor para seus filhos. Poucos pertenciam à alta sociedade, e quase nenhum aos segmentos pobres. Muitos de famílias abastadas realizavam seus estudos superiores nos Estados Unidos, se é que não estudavam lá desde o ensino médio. Não se tratava de culpabilidades individuais, era uma herança de classe. O engajamento de uma grande maioria dos estudantes universitários na Revolução em Cuba é uma prova do valor da educação e da consciência no ser humano.

Talvez algumas coisas das até agora referidas ajudem a compreender o que veio depois.

Não apareci na universidade nos primeiros dias, rejeitava as humilhantes práticas de trote nos calouros, consistentes em raspar à força os recém-chegados. Pedi que cortassem meu cabelo bem curto para que me vissem como aluno novo.

Após resolver o complicado problema do alojamento, fui ao estádio universitário, para ver como poderia me incorporar ao esporte. Havia basquete, beisebol, campo e pista, tudo que eu gostava. Custou bastante desvencilhar-me do compromisso com o treinador de basquete de Belén. Fazia tempo tinha prometido continuar sendo seu discípulo nesse esporte, mas ele era técnico de um clube aristocrático. Expliquei que não podia ser estudante da universidade e jogar noutra equipe. Não entendeu e cortei com ele. Comecei a treinar na equipe universitária de basquete. A escola também pediu que jogasse beisebol pela minha faculdade e eu disse que sim.

Os líderes da faculdade de Direito pediram que fosse candidato a delegado por uma disciplina, e não tive objeção.

Via-me obrigado a realizar muitas coisas num só dia, e morava num bairro distante, onde minha irmã mais velha por parte de pai, Lídia, sempre atenta e afetuosa conosco, decidiu se instalar ao se mudar de Santiago de Cuba para Havana, quando comecei meus estudos universitários.

Um dia descobri que o tempo não me alcançava nem para respirar. Sacrifiquei os esportes e decidi cumprir a tarefa que me pediram os líderes da escola. Lutei com tenacidade para obter a representação, como delegado, da disciplina de Antropologia, o que exigia esforço especial. Na tarefa me enfrentava a um antigo quadro, para quem um cargo na direção da escola significava uma profissão política. Assim começou minha atividade nesse campo.

Não tinha imaginado até que ponto a politicagem, a simulação e as mentiras prevaleciam em nosso país. Mas não o soube desde o primeiro dia. Quando se realizou a eleição, obtive mais de cinco votos para um do rival, e pude contribuir assim para a vitória dos candidatos de nossa tendência em outras disciplinas. Foi assim que, em poucos meses, pelo número de votos obtidos, me tornei o representante dos estudantes do primeiro ano, numa das faculdades mais frequentadas da Universidade de Havana. Isso me proporcionou determinada importância, mas era muito cedo. Não fazia ideia dos interesses que se moviam naquela Universidade.

À medida que me familiarizava com ela, também ia conhecendo sua rica história. Tinha sido uma das primeiras fundadas na época das colônias. As ilustres personalidades da cultura e da ciência eram recordadas em figuras de bronze e mármore às que se tributavam homenagens, e com seus nomes batizavam praças, prédios e instituições universitárias.

Havia admiração especial pelos oito estudantes de Medicina fuzilados em 27 de novembro de 1871 por voluntários espanhóis, sob a acusação de profanarem o túmulo de um jornalista reacionário que servia ao regime colonial, um fato que nem sequer ocorreu, como foi comprovado mais tarde.

Ao lado de minha faculdade, um pequeno parque chamado Lídice – aldeia tchecoslovaca onde os nazistas cometeram uma matança atroz – adicionava elementos de internacionalismo.

Os nomes de Martí, Maceo, Céspedes, Agramonte e outros apareciam por todos os lados e suscitavam a admiração e o interesse de muitos de nós, sem que importasse sua origem social. Não era a atmosfera que se respirava na escola privada de elite onde fiz o curso de ensino médio, com professores que nasceram e se educavam na Espanha. Naquele país se engendrou uma boa parte de nossa cultura, mas também a escravidão e o colonialismo.

Nesta etapa, após as eleições de 1944, o país era presidido por um professor de Fisiologia, que tinha saído da universidade nos anos 1930, quando, em meio à grande crise econômica mundial, foi derrocada a tirania de Machado e se criou, por breves meses, um governo provisório revolucionário. Naquele processo, no quadro de uma independência limitada pela Emenda Platt, os estudantes, ao lado da combativa classe operária cubana e o povo, desempenharam um papel fundamental. O professor de Fisiologia, Ramón Grau San Martín, foi nomeado presidente do governo em 1933. Um jovem revolucionário anti-imperialista, Antonio Guiteras, representante de outras forças populares, nomeado ministro do Interior, foi a figura mais destacada daqueles meses, por causa das medidas corajosas e anti-imperialistas que adotou.

Fulgencio Batista, procedente do setor militar revolucionário dos sargentos e soldados profissionais, promovido a chefe do Exército, captado mais tarde pelos setores reacionários e a própria embaixada dos Estados Unidos, derrubou aquele governo radical, de apenas 100 dias de duração.

Na queda de Gerardo Machado tinha sido determinante a classe operária. A greve geral revolucionária, organizada principalmente pelo pequeno partido dos comunistas, sob a direção brilhante e vibrante do poeta revolucionário Rubén Martínez Villena, iniciou a batalha pelo derrocamento da tirania de Machado. Convém recordá-lo, porque a ideia de uma greve geral revolucionária esteve associada com a nossa luta posterior, desde o ataque ao quartel Moncada. Foi a principal arma utilizada após a ofensiva final exitosa do Exército Rebelde, que o conduziu à vitória total do povo em 1º de janeiro de 1959.

Nos anos 1940 surgiu com força o anticomunismo, que começou a espalhar reações e controlar as mentes através da mídia. Criaram-se as bases para o domínio militar e político do mundo. Pouco restava em nossa casa de altos estudos do espírito revolucionário dos anos 1930.

O partido criado pelo professor, que o levou à presidência em virtude de glórias passadas, tomou o nome que Martí utilizou para organizar a última Guerra de Independência: Partido Revolucionário Cubano, ao que adicionaram o qualificativo de “Autêntico”.

Quando começaram a estourar os escândalos por todas as partes, um senador prestigioso desse mesmo partido, Eduardo Chibás, encabeçou a denúncia ao governo. Nasceu em berço rico, mas era inquestionavelmente honesto, algo incomum nos partidos tradicionais de Cuba. Tinha um espaço de meia hora cada domingo, às 20h, na emissora radiofônica mais escutada de toda a nação. Foi o primeiro caso em nossa pátria da promoção inusitada que esse meio de divulgação em massa podia significar. Seu nome era conhecido em todos os cantos do país. Em Cuba, ainda não existia a televisão. Assim, apesar do analfabetismo reinante, surgiu um movimento político de potencial massificação entre os trabalhadores da cidade e das zonas rurais, os profissionais e a pequena burguesia.

Entre os operários industriais mais avançados e intelectuais renomados, as ideias marxistas se espalhavam com facilidade. Rubén Martínez Villena morreu jovem, vítima da tuberculose, pouco depois de sua obra mais gloriosa: o derrocamento da tirania de Machado. Ficaram seus poemas, que continuam sendo recordados e repetidos. Porém, os preconceitos anticomunistas, que sempre emanavam dos setores privilegiados e dominantes da sociedade cubana, continuaram se multiplicando, desde os dias brilhantes em que Julio Antonio Mella criou a FEU (Federação Estudantil Universitária) e junto com Baliño – companheiro de José Martí em sua luta pela independência – fundou o primeiro Partido Comunista de Cuba.

O governo corrupto de Grau San Martín era caótico, irresponsável, cínico. Queria controlar a universidade e os poucos institutos públicos de ensino médio. Seu instrumento fundamental não era a repressão, e sim a corrupção. A universidade dependia dos fundos do Estado.

Um sujeito sem escrúpulos foi nomeado ministro de Educação. Milhões e milhões de dólares foram malversados. Nada que se parecesse com um programa de alfabetização foi realizado.

A reforma agrária e outras medidas promulgadas pela Constituição de 1940 caíram no esquecimento. Batista foi embora do país cheio de dinheiro para morar na Flórida. E deixou em Cuba as Forças Armadas com promoções e privilégios, e um número não desdenhável de simpatizantes diretamente beneficiados com cargos eletivos no Congresso, municípios, e empregos no aparato burocrático de instituições sociais e empresas privadas.

O pior de tudo foram os pseudorrevolucionários que chegaram ao poder em Cuba junto com Grau San Martín. Era gente que de uma maneira ou outra se posicionava contra Machado e contra Batista. Consideravam-se, portanto, revolucionários. Aos piores deram cargos importantes na polícia repressiva: o Bureau de Investigações, a Secreta, a Motorizada e outros corpos dessa instituição. Ficaram os tribunais de emergência, que podiam mandar à prisão um cidadão sem nenhum direito à liberdade provisória. Enfim, o aparato repressivo de Batista permaneceu inalterável.

Com diferentes nomes, surgiram organizações formadas por pessoas que tiveram relações com Guiteras e outros prestigiosos líderes da luta contra Machado e Batista. Nas fileiras daquela pseudorrevolução havia pessoas sérias e corajosas, que consideravam a si mesmas revolucionárias, uma ideia e um adjetivo que sempre atraíram os jovens em Cuba. A imprensa lhes dava esse epíteto com todo rigor, quando, em verdade, o decorrido era uma fase dramática de revolução frustrada. Não havia um programa social sério e muito menos havia objetivos que conduzissem à independência do país. O único programa verdadeiramente revolucionário e anti-imperialista era do partido fundado por Mella e Baliño e, mais tarde, dirigido por Rubén Martínez Villena. Este jovem e valioso líder, cheio de paixão, proclamou num poema: “Faz falta uma carga para matar velhacos para terminar a obra das revoluções (…)”. Porém, o Partido Comunista de Cuba estava isolado.

Entre os milhares de estudantes da universidade que conheci, o número de anti-imperialistas conscientes e comunistas militantes não ultrapassava 50 ou 60, do total de matriculados, que eram mais de 12.000. Eu mesmo, um entusiasta dos protestos contra aquele governo, me sentia levado por outros valores que mais adiante compreendi que ainda estavam distantes da consciência revolucionária adquirida mais tarde.

Os estudantes, aos milhares, repudiavam a corrupção reinante, os abusos de poder e os males da sociedade. Poucos pertenciam à alta burguesia. Cada vez que tivemos necessidade de sair às ruas, não hesitaram em ir.

Nossa universidade matinha relações e se solidarizava com os exilados dominicanos que lutavam contra Trujillo. Os portorriquenhos que exigiam a independência, liderados por Pedro Albizu Campos, também contavam com seu apoio. Eram elementos de uma consciência internacionalista presentes entre nossos jovens, e que também me inspiravam, tendo sido eu nomeado por eles presidente do Comitê Pró Democracia Dominicana e do Comitê Pró Independência de Porto Rico.

Uma fase de meus estudos universitários ajudaria a compreender o que lá vivi. Iniciando o 2º ano da carreira, em 1946, sabia muito mais de nossa universidade e de nosso país. Ninguém precisou me convidar para participar das eleições da faculdade de Direito. Eu mesmo persuadi um estudante ativo e inteligente, Baudílio Castellanos, que iniciava sua carreira, que se candidatasse pela mesma disciplina que eu, no ano anterior. Conhecia-o bem, porquanto éramos da mesma região leste; ele tinha feito o curso de ensino médio num colégio dirigido por religiosos protestantes. Sei pai era farmacêutico no pequeno vilarejo da usina açucareira Marcané, propriedade de uma multinacional norte-americana, a 4 quilômetros de minha casa em Birán.

Escolhemos entre os estudantes do 1º ano os mais ativos e entusiásticos para integrar a candidatura. Contava com o apoio total do 2º ano, em que os adversários não puderam juntar alunos suficientes para formar uma candidatura contra mim. Aplicamos a mesma linha do ano anterior e, nas eleições, nós obtivemos uma vitória esmagadora. Já tínhamos vasta maioria entre os estudantes da faculdade de Direito, e podíamos decidir quem seria o presidente dos estudantes da faculdade, uma das mais numerosas da Universidade de Havana. Os de 5º e último ano não eram muitos, os de 4º se correspondiam com o ano em que o ensino médio se elevou de quatro a cinco anos, e poucos tinham matriculado nesse ano letivo. Não tínhamos a maioria dos delegados, mas sim a imensa maioria dos estudantes.

Nesse tempo, entramos em contato com o Partido Ortodoxo e, também, com militantes da Juventude Comunista, como Raúl Valdés Vivó, Alfredo Guevara e outros. Conheci Flavio Bravo, uma pessoa inteligente e competente, que dirigia a Juventude Comunista de Cuba.

Pude deixar as coisas como estavam e esperar um ano mais. No fim de tudo, minhas relações não eram más com os delegados dos anos superiores, politicamente neutros. Porém, foi mais forte em mim o espírito competitivo e talvez a autossuficiência e a vaidade que existem em muitos jovens, em nossa época inclusive.

Isto não significa que eu teria tido uma nova oportunidade para esperar um 3º ano normal. Os compromissos já contraídos me conduziram por outros caminhos. Mas antes devo assinalar que vivi os maiores perigos de perder a vida com apenas 20 anos, sem proveito nenhum para a causa verdadeiramente nobre que descobri mais tarde.

Sem dúvida, nossa atividade e força chamaram prematuramente a atenção dos donos da única universidade do país. Nosso alto centro de estudos tinha adquirido especial importância por sua raiz histórica e seu papel dentro da república diminuída, que nasceu da imposição da Emenda Platt à nação cubana quando se libertou da Espanha. A nova presidência da Federação Estudantil Universitária estava para resolver-se, tendo em vista que o anterior presidente tinha passado a ocupar um alto cargo no governo de Grau.

Levando em conta meu caráter rebelde, enfrentei o poderoso grupo que controlava a universidade. Passaram-se dias, em verdade semanas, nas que só me acompanhou a solidariedade de meus companheiros de 1º e 2º ano da faculdade de Direito. Em certas ocasiões, saía escoltado da universidade por grupos de estudantes que se apertavam em minha volta. Mas eu, apesar disso, ia todos os dias à faculdade e participava das atividades, até que, um dia, declararam que não me seria permitido entrar nesse recinto.

Contei certa feita que, no dia seguinte − um domingo − fui à praia com a namorada e, deitado de bruços, chorei, porque estava determinado a desafiar aquela proibição e compreendia o que isso significava. Sabia que o inimigo tinha chegado ao limite de sua tolerância. Em minha mente quixotesca só cabia a alternativa de desafiar a ameaça. Podia conseguir uma arma, e a levaria comigo.

Um amigo militante do Partido Ortodoxo, com que travei relações porque gostava dos esportes e visitava a universidade com frequência, me contava as experiências do enfrentamento às ditaduras de Machado e Batista, conversava muito comigo e sabia de nossas lutas; ao tomar conhecimento da situação criada, e a decisão que eu tinha tomado, moveu céus e terras para evitar o pior.

Depois disto sucederam numerosos acontecimentos que relatei em diferentes oportunidades, e não desejo acrescentar ao que exponho aqui, que por si já é extenso. Porém, sinto a necessidade de expressar que, desde então, estive decidido a tudo e empunhei uma arma. As experiências de minha vida universitária me serviram para a longa e difícil luta que empreenderia pouco tempo depois, como discípulo de José Martí e revolucionário cubano. Meu pensamento amadureceu rapidamente. Decorridos apenas três anos de minha graduação, assaltava com meus companheiros de ideal a segunda praça militar do país. Foi a retomada do levante armado do povo de Cuba por sua independência plena e pela república de justiça sonhada pelo nosso Herói Nacional José Martí.

Após a vitória de 1º de janeiro, conhecidos e incansáveis historiadores, como Pedro Álvarez Tabío, e graças à iniciativa de Celia Sánchez, que esteve presente e cumpriu importantes missões na defesa daquele baluarte revolucionário, visitaram cada rincão da Sierra Maestra, onde se desdobraram os acontecimentos, e compilaram informação fresca das pessoas em cada casa e lugar onde estivemos. Arquivaram informações sem as quais ninguém, naturalmente nem eu, poderia se responsabilizar sobre cada detalhe que dá veracidade total ao que exponho aqui.

Além disso, só quem fosse guia e chefe daquela força de combatentes bisonhos poderia se responsabilizar por uma história rigorosa dos acontecimentos nos 74 dias de combate, em que, desesperadamente, nós, os revolucionários conseguimos destruir os planos das Forças Armadas daquele tempo, assessoradas e equipadas pelos Estados Unidos, e convertemos o impossível em possível. Não existe outro modo de homenagear os que tombaram naquela gesta. Não tínhamos antecedentes em nossa pátria de uma contenda assim. As gloriosas lutas pela independência tinham finalizado quase meio século antes. As armas, as comunicações, eram todas bem diferentes em outra época; não existiam os tanques, os aviões, as bombas de até 500 quilos de TNT. Foi necessário começar de zero. Desde que terminara o ensino médio, e apesar de minha origem, tinha uma concepção marxista-leninista de nossa sociedade e uma convicção profunda da justiça.

Da excelente prosa do historiador Álvarez Tabío, tomei o melhor e depurei o desnecessário. O cartógrafo Otto Hernández Garcini, os peritos militares e designers elaboraram os mapas que contém este livro, onde tais planos eram necessários para a análise do tema pelos profissionais das armas. E faltaria explicar como, depois da última ofensiva inimiga, que quebrou a espinha dorsal da tirania segundo dizia o Che, transferimos da Sierra Maestra para a planície nossas concepções de luta, e, em apenas 5 meses, destruímos a força de 100.000 homens armados que defendiam o regime e apreendemos todas as armas

Este livro, A Vitória Estratégica, é o preâmbulo desse outro, ainda não escrito, sobre a rápida e contundente contra-ofensiva rebelde que nos levou às portas de Santiago de Cuba e à vitória definitiva da Revolução Cubana.